Observatório do Campo: Regressividade, Renda e os Desafios Políticos da Nova Reforma

A recente aprovação da reforma tributária do consumo foi um marco histórico, mas sua relativa fluidez política revela lições importantes sobre o que nos aguarda com a anunciada reforma da renda. A reforma do consumo não prometia redistribuir riqueza, reduzir carga ou enfrentar privilégios. Ao contrário, sua força política residiu justamente na promessa de neutralidade: simplificar sem redistribuir, reorganizar sem desagradar. Para tornar isso possível, os efeitos distributivos foram empurrados para um futuro distante, com longos períodos de transição e compensações financeiras que diluíram conflitos. Além disso, tratava-se de uma tributação com repercussão indireta, repassada ao consumidor final, o que protegeu os setores empresariais de impactos imediatos. Por fim, a disputa federativa foi canalizada para uma lógica técnico-negocial, onde prevaleceram acordos sobre origens e destinos, fundos de compensação e comitês gestores. Em resumo: o sucesso da reforma do consumo derivou de sua habilidade em evitar confrontos diretos com atores poderosos.

Com a reforma da renda, o cenário muda drasticamente. Diferentemente da tributação do consumo, a tributação da renda exige enfrentar interesses diretos e concentrados, especialmente os da elite financeira. É nesse ponto que entra a questão da regressividade: em um sistema fiscal onde os mais pobres pagam proporcionalmente mais, qualquer tentativa de progressividade real passa por tributar mais e melhor os que estão no topo. Isso implica não apenas desafios técnicos, mas conflitos abertos com setores altamente articulados e influentes, que tendem a operar tanto na arena política quanto na formação da opinião pública. A cultura tributária brasileira também impõe barreiras: discursos contrários à tributação dos super-ricos encontram defensores entre aqueles que sequer seriam afetados por tais medidas. Trata-se de uma distorção de percepção, na qual narrativas ideológicas obscurecem os dados concretos, gerando uma rejeição antecipada a propostas que sequer chegaram a ser debatidas com profundidade. O desafio da reforma da renda, portanto, é não apenas técnico ou legislativo — é cultural, político e simbólico. Mas não se trata apenas de resistência externa. O próprio campo tributário precisa fazer sua autocrítica. É notável como, diante do debate sobre a tributação dos ultra-ricos, muitos tributaristas abandonam o rigor técnico em favor de argumentos emocionais, ironias fáceis ou ataques jocosos a propostas que sequer analisaram com seriedade. Ignoram-se dados, descartam-se experiências internacionais, e o que prevalece é o gesto teatral de ridicularizar ideias para agradar plateias ideologicamente alinhadas ou interesses de grupos de pressão. Essa postura compromete não apenas o debate, mas a própria reputação do campo tributário enquanto instância de elaboração crítica. O Brasil precisa encarar esse tema com maturidade, como já o fazem especialistas em outras tradições tributárias. E é legítimo discordar, claro — mas que essa discordância se dê no plano da honestidade intelectual. Quando o tributarista transforma seu prestígio técnico em instrumento de lobby, ele não só cava o próprio descrédito como arrasta consigo a credibilidade de todo o campo. A defesa de interesses particulares com roupagem técnica, quando descolada da análise crítica, não é apenas uma traição ao ofício — é um retrocesso civilizatório.

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