Há mais de uma década, quando ingressei na Receita Federal, ouvi uma metáfora que jamais esqueci. Em duas ocasiões distintas, dois auditores experientes me explicaram, com a mesma frase, como as coisas funcionariam na instituição: “Existem dois tipos de auditores: os cães e os gatos. Os cães são fiéis ao dono; os gatos, fiéis à casa.”
À primeira vista, trata-se de uma analogia simples, quase pueril — mas seu alcance simbólico é imenso. Ela traduz, com espantosa economia de palavras, um dilema estrutural da burocracia fiscal: a quem serve o auditor? Ao governo da vez ou à instituição que habita? A metáfora é útil não apenas pela forma como captura o imaginário da administração pública, mas também porque expõe, sem disfarces, a tensão entre técnica e política — entre os imperativos da hierarquia e a fidelidade a um certo “espírito da casa”.
A lealdade ao “dono”, entendida aqui como o ocupante transitório do poder político, sugere uma burocracia meramente instrumental. Nesse modelo, o técnico seria apenas a longa manus do governo — sua função se resumiria a obedecer às ordens, implementar as diretrizes e não criar obstáculos. A virtude estaria na disciplina, não na reflexão. O problema, claro, é que essa visão anula a própria razão de existir da burocracia como instância de estabilidade, de memória institucional e de freios técnicos. Se a função do servidor público é apenas executar, então para que técnicos de Estado? Bastariam cargos comissionados.
Por outro lado, a imagem do “gato” — o fiel à casa — também não escapa incólume. Afinal, o que é a “casa”? Quem define seus valores? A que espírito institucional se deve lealdade? O risco aqui é de que a burocracia, ao tentar se preservar como entidade supostamente neutra e técnica, se feche em torno de si mesma. A lealdade à casa vira, então, apego à forma, ao procedimento, ao status quo. E o que era para ser fidelidade à função pública degenera em formalismo, autocentramento e desconexão com as demandas da sociedade.
O resultado é uma forma sutil de isolamento institucional: a burocracia passa a solucionar problemas que ela mesma criou, com base em categorias que só ela compreende, sem prestar contas ao mundo externo. Esse fenômeno é particularmente sensível no campo tributário, onde a complexidade técnica tende a produzir um universo discursivo próprio, autorreferenciado e, não raro, impermeável às pressões sociais.
O mais irônico é que, ao se proclamar neutra, a burocracia nega a dimensão política do seu próprio fazer — e, com isso, perde a chance de disputar, de maneira legítima, a direção do campo tributário. Afinal, poucas áreas do Estado são tão politicamente carregadas quanto a tributação. Dizer que a aplicação da norma tributária é um ato puramente técnico é, no mínimo, uma meia-verdade — e, no limite, uma forma de ocultar o poder sob a roupagem da neutralidade.
Esse distanciamento cobra seu preço. Quando a burocracia se recusa a se implicar no debate público, ela abre espaço para ser substituída — por forças políticas de ocasião, por discursos voluntaristas, por estruturas paralelas. Foi o que aconteceu, em certa medida, com a própria OCDE, que durante muito tempo se apresentou como guardiã técnica da ordem tributária internacional, apenas para descobrir, com a (re)eleição de Donald Trump e a insatisfação dos países em desenvolvimento, que o jogo político não pode ser ignorado indefinidamente.
É por isso que a dualidade entre cães e gatos, embora instigante, é insuficiente. Talvez devêssemos aspirar a outra figura: a de uma bússola, que aponta uma direção mesmo em meio à tempestade. Uma burocracia que reconhece sua natureza técnica, mas também sua função pública; que respeita o governo eleito, mas não abdica da responsabilidade de ponderar, propor e proteger os valores do campo ao qual esses atores pertencem.
O desafio, portanto, não é escolher entre o dono ou a casa — mas lembrar que tanto o dono quanto a casa existem para servir à sociedade. E que a burocracia, se quiser ser mais que um animal de estimação, precisa aprender a dialogar com ela.