A relação entre técnica e política no campo da burocracia fiscal sempre esteve imersa em um campo de tensões e, talvez, seja apenas mais conveniente apresentar essa disputa de maneira clara e estruturada. A OCDE e a ONU, duas organizações que atuam no mesmo setor, defendem abordagens que, à primeira vista, parecem se opor. Uma, alegadamente técnica, enquanto a outra se apresenta com uma perspectiva mais política. Mas, ao olhar com mais cuidado, é difícil não perceber que, por trás dessa dicotomia, o que se desenha é muito mais uma questão de poder do que de eficiência técnica.
É difícil argumentar que a burocracia fiscal não se pretende técnica. Afinal, é dessa forma que se apresenta, como um campo baseado em conhecimento especializado, análise de fluxos financeiros e fórmulas matemáticas que se propõem a garantir a arrecadação de impostos de maneira justa e eficiente. Mas, se há algo que esse campo pretensamente técnico revela ao longo do tempo, é que as soluções, por mais sofisticadas que sejam, não são imunes às circunstâncias políticas. A OCDE, predominante nesse cenário, frequentemente se apresenta como a guardiã da técnica fiscal, com suas diretrizes e soluções que, de alguma forma, buscam garantir previsibilidade e estabilidade nos complexos processos de tributação internacional. Mas será que, de fato, a suposta neutralidade técnica é o que está em jogo?
A OCDE, em sua pretensa postura técnica, tenta moldar o sistema tributário global a partir de um conjunto de normas que visam promover a eficiência econômica. O foco em combater a evasão fiscal e a concorrência fiscal prejudicial é, sem dúvida, uma missão louvável. Mas, ao observar com mais atenção, é difícil não notar que essas soluções muitas vezes favorecem as grandes economias, aquelas com maior capacidade de manipular os fluxos financeiros globais. O dito discurso técnico, então, não pode ser lido como algo isento, mas como parte de uma estratégia que, embora envolta em números e propostas racionais, beneficia aqueles com maior poder econômico. A técnica, nesse caso, se revela não tão neutra quanto parece, mas sim uma escolha que favorece uma ordem já existente.
Enquanto isso, a ONU se apresenta como uma alternativa alegadamente política, que tenta desafiar a hegemonia do discurso supostamente técnico. A sua abordagem, mais voltada para a justiça fiscal, busca, de maneira aparente, dar voz aos países em desenvolvimento, que se veem cada vez mais à margem das discussões formuladas em torno de um sistema tributário global considerado “eficiente”. Ao tentar incorporar as perspectivas dos países que mais sofrem com a evasão fiscal e a desigualdade econômica, a ONU desafia, de alguma maneira, a narrativa formalmente técnica da OCDE. Mas, novamente, se analisarmos o cenário com um olhar atento, a tentativa da ONU de se posicionar como uma força alternativa também revela a intrínseca luta pelo controle do discurso tributário. Embora seus esforços pareçam buscar a justiça, suas propostas, por vezes, se deparam com a resistência das potências mais poderosas, que não têm interesse em ver seus privilégios fiscais questionados. A disputa aqui não é apenas sobre equidade ou eficiência, mas sobre a permanência das estruturas de poder que sustentam a política fiscal global.
O exemplo do Projeto BEPS, coordenado pela OCDE, ilustra bem essa dinâmica. Criado em teoria para combater a erosão da base tributária e o deslocamento de lucros para paraísos fiscais, o projeto teve impacto em diversos países, mas também deixou claro o limite da abordagem alegadamente técnica. Embora tenha sido eficaz em algumas áreas, o BEPS não conseguiu resolver o cerne do problema da desigualdade tributária global. As economias emergentes, que continuam a sofrer com a fuga de capitais, não viram suas demandas atendidas. A técnica, em teoria, parece falhar ao não compreender as diferenças substanciais entre os países e suas realidades fiscais. Ao focar na dita eficiência, ela negligencia, talvez inconscientemente, a necessidade de um sistema mais inclusivo, que leve em conta as disparidades globais.
A dicotomia entre técnica e política, portanto, não é um fenômeno novo. Ela sempre existiu e, de certo modo, sempre será parte do campo tributário. A globalização e a digitalização da economia apenas tornaram mais evidente essa tensão, com novos modelos de negócios que desafiam as normativas fiscais tradicionais. Mas, em última análise, a questão central permanece a mesma: até que ponto a referida técnica é, de fato, uma escolha neutra, e até que ponto ela reflete uma estratégia política, desenhada para garantir a manutenção da ordem econômica global?
A OCDE, ao se posicionar como uma instituição pretensamente técnica, acaba consolidando um discurso que, na prática, favorece os interesses dos países mais poderosos. Seu foco, que no discurso parece estar na eficiência, embora aparentemente imparcial, não consegue se desvincular das relações de poder que moldam a economia global. Já a ONU, ao tentar apresentar uma alternativa, alegadamente, mais política e inclusiva, também se vê diante de grandes desafios. A resistência dos países desenvolvidos a suas propostas revela a dificuldade de implementar soluções que realmente atendam às necessidades dos países mais pobres, sem cair em um viés excessivamente ideológico. Portanto, a disputa entre as duas organizações é, em última análise, um reflexo das relações de poder que governam o sistema tributário internacional. A escolha pelo discurso técnico, como a apresentada pela OCDE, não é uma escolha isenta de fragmentos políticos. Ela está, na verdade, profundamente entrelaçada com interesses econômicos e políticos que pretensamente favorecem as economias desenvolvidas. Da mesma forma, a postura da ONU, ao enfatizar a justiça fiscal no seu discurso, também é uma resposta política, tentando desafiar essa estrutura de poder. O futuro do sistema tributário internacional, portanto, não se resolverá apenas com a adoção de soluções técnicas ou políticas isoladas, mas com a compreensão de que ambas as dimensões estão inevitavelmente interligadas.