O recente congelamento de mais de 2 bilhões de dólares em recursos federais destinados à Universidade de Harvard, por determinação direta do governo Trump, reacendeu um debate histórico nos Estados Unidos: até onde vai a autonomia universitária diante da ingerência política? A medida, justificada pela Casa Branca como uma resposta à suposta conivência da universidade com manifestações antissemitas em seu campus, tem sido interpretada por muitos como uma retaliação de cunho político-ideológico. Mas, como de costume, a questão exige mais nuance do que sugerem os comunicados oficiais ou os protestos apaixonados.
A tensão entre o governo Trump e as universidades não é nova. Desde o primeiro mandato, a administração já dava sinais de incômodo com o que chamou de “cultura do politicamente correto” e “doutrinação ideológica” no ensino superior americano. O segundo mandato apenas ampliou esse embate. Harvard, a mais simbólica das instituições da Ivy League, tornou-se agora o epicentro dessa disputa.
A sequência dos fatos é reveladora. Após protestos no campus relacionados ao conflito entre Israel e Palestina, o governo enviou uma carta à universidade exigindo mudanças profundas: reformas administrativas, auditorias externas, diversificação forçada de opiniões nos departamentos, denúncias de alunos “hostis” aos valores americanos e até medidas disciplinares por atos ligados aos protestos. Em outras palavras, um pacote abrangente de controle institucional justificado pela necessidade de combater o antissemitismo. Harvard recusou. Horas depois, os recursos federais foram congelados.
A medida foi acompanhada de ameaças públicas à isenção fiscal da universidade. Em rede social, Trump insinuou que Harvard poderia ser tributada como uma entidade política caso continuasse promovendo uma “doença ideológica”. A sugestão, além de juridicamente questionável, evocou o uso do fisco como instrumento de coerção, algo que nos Estados Unidos remete inevitavelmente aos abusos cometidos durante o governo Nixon. Coincidência ou não, comentaristas mais céticos não deixaram de notar o paralelo.
Do ponto de vista jurídico, especialistas têm questionado os fundamentos das ações da Casa Branca. A suspensão de repasses bilionários sem a devida notificação ao Congresso, sem investigação formal concluída e sem chance de contraditório à universidade, estaria em desacordo com os próprios dispositivos legais que regulam o financiamento federal. Como afirmou Erwin Chemerinsky, decano da Faculdade de Direito de Berkeley, até mesmo distritos escolares segregacionistas dos anos 1960 receberam mais garantias processuais do que as universidades estão recebendo agora.
Mas o aspecto mais espinhoso do episódio talvez esteja menos no mérito jurídico e mais no plano simbólico. A liberdade acadêmica, enquanto valor constitucional implícito e pilar do ethos universitário, sempre foi uma zona cinzenta na política americana. Diferente da liberdade de expressão, cuja proteção constitucional é explícita, a autonomia universitária está ancorada em costumes institucionais, precedentes judiciais fragmentados e normas de financiamento que variam de acordo com o humor político de cada governo.
Nesse sentido, o episódio com Harvard não inaugura uma nova era — apenas escancara a fragilidade de um sistema que há décadas oscila entre a proteção da independência acadêmica e a tentação de instrumentalizá-la. A tentativa de condicionar recursos públicos ao alinhamento com uma agenda específica, mesmo sob o pretexto de combater o discurso de ódio, reabre um dilema já antigo: onde termina o combate ao extremismo e começa a vigilância ideológica?
O governo Trump alega agir com base em leis já existentes, como o Título VI da Lei dos Direitos Civis de 1964, que proíbe discriminação com base em raça, cor ou origem nacional. Mas críticos apontam que o uso dessas normas tem sido seletivo, aplicado com ênfase em protestos vinculados a esquerda e ignorado em episódios de viés oposto. A criação de uma força-tarefa contra o antissemitismo, dotada de poderes amplos e pouca transparência, apenas reforça essa impressão.
Harvard, por sua vez, não está sozinha. Outras universidades de ponta, como Columbia, Brown e Princeton, também foram alvo de exigências semelhantes. Algumas cederam, total ou parcialmente. Outras, como Harvard, recorreram ao Judiciário. Grupos de ex-alunos, entidades acadêmicas e até associações de professores entraram com ações judiciais contra o governo, alegando violação da Primeira Emenda e abuso de poder.
Ao mesmo tempo, pesquisas recentes mostram um desgaste na imagem das universidades junto ao público americano. Levantamento da Gallup indica que a confiança na educação superior caiu vertiginosamente nos últimos anos, sobretudo entre eleitores republicanos. A percepção de que universidades estariam promovendo agendas políticas disfarçadas de ensino tem alimentado o discurso governamental e encontra eco em setores relevantes da sociedade.
Esse descompasso entre o papel ideal das universidades e sua percepção pública parece alimentar um ciclo vicioso: quanto mais se defende a liberdade acadêmica, mais ela é retratada como privilégio de elites descoladas da realidade. E quanto mais se tenta regular seu conteúdo, mais se enfraquece sua função crítica. No fim, o que se perde é o espaço de mediação entre saber e poder.
O caso Harvard, assim, não é um episódio isolado nem um desvio inesperado. É apenas a versão mais recente de uma disputa de longa data sobre quem controla o conhecimento — e a quem ele deve servir. A retórica da defesa da liberdade pode estar em ambos os lados do conflito. Mas, como sempre, a liberdade mais ameaçada é aquela que não se alinha com o poder hegemônico do momento.
Resta saber até onde irá esse braço de ferro institucional e qual será o custo, para a universidade e para os Estados Unidos da América, de um precedente que mistura recursos públicos, política partidária e a promessa — por vezes incômoda — de liberdade intelectual.