A Clivagem Entre ONU e OCDE na Tributação Internacional: Entre Técnica e Política

A crescente disputa entre a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pela liderança na formulação das normas de tributação internacional não pode ser reduzida a uma mera divergência técnica. Essa disputa reflete, na realidade, a perpetuação de uma clivagem histórica entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, evidenciada nas diferentes abordagens que ambas as organizações adotam em relação à justiça fiscal e ao poder normativo sobre o sistema tributário global. Enquanto a OCDE, tradicionalmente dominada pelas economias mais ricas, apresenta-se como a principal instância reguladora da tributação internacional, a ONU tenta se consolidar como uma alternativa mais inclusiva, baseada na perspectiva dos países em desenvolvimento. Essa dualidade de atores gera tensões não apenas na esfera diplomática, mas também no discurso tributário dominante, evidenciando que a estrutura normativa do direito tributário internacional está longe de ser neutra.

A OCDE, ao longo das últimas décadas, assumiu a vanguarda no estabelecimento de diretrizes tributárias globais, promovendo iniciativas como o projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) e o Imposto Mínimo Global, com o objetivo de reduzir a concorrência fiscal prejudicial e evitar a erosão das bases tributárias nacionais. Seu discurso, calcado em sofisticadas categorias econômicas e jurídicas, busca conferir um caráter técnico às suas propostas, destacando-se pela defesa de um sistema tributário internacional mais eficiente e menos distorcido. No entanto, essa tecnicidade tem sido frequentemente questionada, pois suas soluções acabam, invariavelmente, favorecendo as grandes economias. Os critérios de alocação tributária e as recomendações da OCDE são desenhados sob a ótica dos países que mais exportam capital, o que reforça um viés sistêmico que desconsidera as necessidades das nações menos desenvolvidas. Dessa forma, a aparente neutralidade técnica da OCDE esconde uma estrutura de poder que reproduz a marginalização dos países periféricos no debate fiscal global.

Por outro lado, a ONU, tentando ocupar um espaço alternativo, propõe uma abordagem mais voltada para a justiça fiscal, privilegiando os interesses dos países em desenvolvimento. A tentativa mais recente de reposicionar a organização no campo tributário se deu com a criação de um Comitê Ad Hoc voltado para a elaboração de um novo arcabouço internacional sobre tributação. Esse movimento tem como fundamento a ideia de que um sistema tributário global mais justo não pode ser ditado exclusivamente pelos países ricos, mas deve incorporar as perspectivas das nações que historicamente sofrem os impactos da concorrência fiscal e da evasão de receitas tributárias por multinacionais. No entanto, o projeto da ONU enfrenta severas críticas, sobretudo por parte dos países desenvolvidos, que o acusam de politização excessiva. Segundo essa perspectiva, a abordagem da ONU, ao invés de produzir soluções pragmáticas e eficazes, enfatiza aspectos políticos que dificultam a implementação de medidas concretas.

A disputa entre a OCDE e a ONU não se restringe à formulação de normas tributárias, mas revela um embate mais profundo sobre os próprios fundamentos do direito tributário internacional. Historicamente, o campo da tributação internacional surgiu a partir de um discurso altamente influenciado pela defesa do livre comércio e pela oposição entre interesses comerciais expansionistas e soberania fiscal local. Esse modelo se consolidou no século XX, quando a Sociedade das Nações, precursora da ONU, iniciou as primeiras tentativas de evitar a dupla tributação internacional. Nesse período, a dicotomia entre os países exportadores e importadores de capital tornou-se evidente, e as soluções adotadas privilegiaram, em grande parte, os interesses das grandes potências econômicas. O colapso da Sociedade das Nações e a ascensão da OCDE como principal fórum de debates tributários no pós-guerra consolidaram essa estrutura de poder, marginalizando outras abordagens que tentavam dar maior voz aos países periféricos.

O controle do discurso técnico é um dos elementos centrais desse embate. A OCDE, ao longo de sua trajetória, conseguiu consolidar a narrativa de que a tributação internacional deve ser regida por princípios eminentemente técnicos e econômicos, minimizando a dimensão política das decisões fiscais globais. A ONU, por sua vez, busca evidenciar que a tributação é, antes de tudo, uma questão de justiça social e de equidade na distribuição da riqueza global. O Comitê de Especialistas em Cooperação Tributária Internacional da ONU representa um esforço para dar visibilidade a essa abordagem, mas sua capacidade de influência ainda é limitada, tanto por restrições institucionais quanto pela resistência das economias mais avançadas.

A questão central que emerge desse conflito é se a tributação internacional deve ser guiada exclusivamente por critérios técnicos ou se deve incorporar, de forma explícita, considerações políticas e sociais. Os defensores da OCDE argumentam que a tecnicidade garante previsibilidade e estabilidade ao sistema tributário global, reduzindo incertezas e promovendo um ambiente mais favorável ao comércio internacional. No entanto, essa suposta neutralidade técnica frequentemente mascara interesses políticos, uma vez que as decisões sobre tributação são, inevitavelmente, condicionadas pela estrutura econômica global. Já a ONU, ao enfatizar a necessidade de uma abordagem mais inclusiva, acaba sendo acusada de transformar a tributação em um campo de disputas ideológicas, dificultando o avanço de consensos e a implementação de medidas concretas.

Essa polarização evidencia que a forma como o debate tributário é conduzido tem implicações diretas sobre a distribuição de poder no cenário internacional. A ascensão da OCDE como principal formuladora de normas tributárias ocorreu em um contexto geopolítico específico, no qual os países desenvolvidos buscavam preservar sua posição de vantagem no comércio global. Ao longo do tempo, a organização consolidou um arcabouço normativo que reforça essa estrutura, dificultando a incorporação de perspectivas alternativas. A ONU, por sua vez, ao tentar reposicionar-se como um ator relevante no debate tributário, enfrenta não apenas resistência política, mas também desafios institucionais que limitam sua capacidade de efetivamente alterar o status quo.

O futuro dessa disputa permanece incerto. A pressão dos países em desenvolvimento por um sistema tributário mais equitativo continua a crescer, impulsionada pelo aumento da digitalização da economia e pela necessidade de novas fontes de arrecadação para financiar políticas públicas. A ONU pode ampliar sua influência caso consiga demonstrar que sua abordagem é capaz de produzir soluções concretas sem cair em um viés excessivamente ideológico. Por outro lado, a OCDE terá que lidar com críticas crescentes sobre a falta de representatividade de suas decisões e a necessidade de incorporar, de forma mais transparente, os interesses das economias emergentes. A academia e os especialistas em tributação internacional devem acompanhar esse processo com atenção, pois a forma como o debate tributário é estruturado define não apenas os fluxos financeiros globais, mas também a própria arquitetura do poder econômico internacional. O que está em jogo não é apenas uma disputa entre duas organizações, mas sim o futuro da governança fiscal global e a possibilidade de construção de um sistema tributário mais equilibrado e justo.

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