Muito já se falou sobre o tarifaço de Donald Trump. A decisão unilateral de impor tarifas a produtos de parceiros comerciais causou incômodo, surpresa e previsíveis reações liberais. Afinal, ver os Estados Unidos — país que estruturou a ordem econômica internacional com base na liberdade de mercado e na redução de barreiras — adotando medidas típicas do velho mercantilismo é, no mínimo, desconcertante. A retórica bélica, a linguagem do inimigo comercial e a lógica de retaliação são ecos diretos da doutrina protecionista contra a qual o liberalismo clássico se ergueu. E não apenas isso: a guinada tarifária de Trump também se aproxima de um outro arquétipo ideológico historicamente distante do ideário estadunidense — o “Cepalismo” latino-americano, com sua defesa da substituição de importações e proteção à indústria nascente. O país que se dizia a “terra da liberdade” agora recorre às mesmas ferramentas que, no passado, criticava como ineficientes ou retrógradas.
Mas o mais surpreendente não está na ação dos Estados Unidos — e sim na reação dos demais países. Em vez de retomarem a agenda de tributação da economia digital, muitos optaram por responder no mesmo campo do protecionismo de bens. Uma escolha, no mínimo, ingênua. O impacto real do tarifaço sobre a riqueza americana é um pouco mais limitado: a balança comercial dos EUA pode até ser deficitária em bens, mas é altamente superavitária em serviços e propriedade intelectual. É nesses ativos intangíveis que reside o verdadeiro poder econômico dos Estados Unidos — e não na exportação de produtos físicos. Enquanto o mundo responde com tarifas, o núcleo da economia americana segue blindado. Em outras palavras: os países estão lutando uma guerra de superfície, enquanto o valor real circula por debaixo da mesa, em redes digitais, plataformas globais e fluxos de dados invisíveis às alfândegas.
Havia, portanto, uma oportunidade clara: avançar na agenda da tributação digital, travada nos últimos anos justamente pelo medo de represálias comerciais americanas. A história é conhecida: quando Macron anunciou a intenção de tributar serviços digitais na França, ainda no primeiro mandato de Trump, a reação americana foi imediata — ameaças de sobretaxar o vinho francês e escalar a disputa. A França recuou. Agora, no entanto, o contexto mudou. Se os Estados Unidos decidiram unilateralmente lançar mão de tarifas, o argumento da retaliação perde força. Era o momento de dizer: “Já que vocês tributam nossos bens, tributaremos seus serviços”. Uma medida coerente, tecnicamente defensável e com maior potencial redistributivo. Afinal, diferentemente das tarifas — cujo custo recai quase sempre sobre o consumidor final — a tributação da renda digital pode, em tese, ser compensada no país de residência da empresa, minimizando o impacto sobre o contribuinte local. Ainda assim, essa oportunidade foi ignorada. E mais uma vez, a agenda tributária ficou acuada diante do discurso comercial. O campo tributário, que poderia ter liderado uma resposta sofisticada e justa, preferiu o silêncio. E isso, mais do que qualquer tarifa, deveria nos alarmar.