A regressividade tributária no Brasil: escolhas políticas e implicações sociais

O debate sobre a matriz tributária brasileira frequentemente recorre a argumentos de ordem técnica e jurídica, que buscam justificar a composição da carga fiscal com base na eficiência arrecadatória e na neutralidade econômica. No entanto, sob esse verniz técnico, esconde-se uma realidade fiscal marcada por assimetrias profundas: a predominância da tributação sobre o consumo em detrimento da renda, o que contribui diretamente para a manutenção de um sistema regressivo e socialmente desigual.

A escolha da base de incidência é elemento fundante de qualquer sistema tributário. No Brasil, essa escolha tem sido sistematicamente direcionada para a tributação do consumo — responsável por mais da metade da arrecadação nacional — enquanto a renda permanece como uma base marginal, com baixa participação no total arrecadado. Essa assimetria produz um efeito distributivo perverso: tributos incidentes sobre o consumo são, por definição, regressivos, pois incidem igualmente sobre todos, independentemente da capacidade econômica. Já os tributos sobre a renda, quando adequadamente estruturados, possibilitam maior progressividade, ao adaptar a carga tributária à condição material do contribuinte.

Essa regressividade estrutural não decorre apenas de um desenho técnico ineficiente, mas de decisões políticas reiteradas, que refletem prioridades históricas e institucionais do Estado brasileiro. A adoção de tributos sobre o consumo, por sua facilidade de arrecadação e aparente neutralidade, tornou-se um caminho preferencial para governos em busca de estabilidade fiscal sem enfrentar os conflitos distributivos inerentes à tributação sobre a renda. A opção, embora funcional do ponto de vista da arrecadação, compromete seriamente os princípios de justiça fiscal e equidade.

A estrutura da matriz tributária brasileira, contudo, falha em alcançar esse equilíbrio. O peso excessivo da tributação sobre o consumo não é devidamente compensado por uma tributação eficaz sobre a renda. O resultado é um sistema em que os tributos mais regressivos predominam e os instrumentos de progressividade operam de forma limitada, quando não simbólica. A consequência é a sobrecarga fiscal imposta às camadas de menor renda, que destinam parcela significativa de seus rendimentos ao pagamento de tributos incidentes sobre bens e serviços de consumo básico.

A baixa incidência da tributação sobre a renda no Brasil não é um fenômeno recente. Desde o início do século XX, houve resistência sistemática à adoção de medidas que buscassem tributar fortemente os rendimentos mais elevados. Ainda que a Constituição de 1988 tenha consagrado o princípio da capacidade contributiva e estabelecido diretrizes para um sistema tributário progressivo, sua concretização legislativa tem sido limitada. A alíquota máxima do imposto de renda pessoa física permanece relativamente modesta, e a tributação sobre lucros e dividendos distribuídos — prática comum em outros países — segue inexistente. Assim, a renda acumulada pelos estratos superiores da sociedade goza de uma proteção institucionalizada, que compromete a função redistributiva da tributação.

Essa subtributação da renda no Brasil pode ser ilustrada com dados comparativos internacionais. Enquanto países como Finlândia, Japão, Dinamarca e Áustria aplicam alíquotas máximas de imposto de renda superiores a 50%, o Brasil figura em 88º lugar no ranking global, segundo dados da Trading Economics, com uma alíquota máxima de apenas 27,5%. Tal disparidade evidencia a pouca ambição redistributiva da política fiscal brasileira e corrobora o argumento de que a renda, particularmente nos estratos superiores, é tributada de maneira tímida. O contraste entre a carga tributária incidente sobre os rendimentos em países centrais e a leveza com que esses mesmos rendimentos são tratados no Brasil demonstra que a baixa progressividade não é uma fatalidade técnica, mas uma decisão política que tem implicações diretas na perpetuação das desigualdades sociais.

Nesse cenário, a baixa progressividade da tributação sobre a renda revela-se insuficiente para corrigir, mesmo que parcialmente, os efeitos regressivos da tributação sobre o consumo. Em outras palavras, não se trata apenas de um desequilíbrio quantitativo entre duas bases distintas, mas de um verdadeiro confronto estrutural: a regressividade intensa do consumo não encontra contrapeso na renda, justamente porque o sistema opta por tratá-la com parcimônia, preservando privilégios e isenções que beneficiam os extratos superiores da pirâmide econômica.

A dogmática tributária brasileira, ao não problematizar suficientemente a repercussão econômica dos tributos indiretos, contribui para obliterar essa realidade. Tributos como o ICMS, o IPI ou o PIS e a COFINS são frequentemente descritos com base em sua incidência nas etapas da cadeia produtiva. No entanto, conforme observa a doutrina mais atenta, sua base de incidência é, de fato, o consumo. O contribuinte de iure — geralmente o produtor ou o comerciante — apenas antecipa o pagamento do tributo, cujo ônus é integralmente repassado ao consumidor final, verdadeiro contribuinte de fato.

Esse modelo de arrecadação, embora funcional sob a ótica da eficiência administrativa, resulta em inegável regressividade. A uniformidade da alíquota ignora que 10% pagos em tributos por um indivíduo de baixa renda representam sacrifício proporcionalmente maior do que a mesma quantia paga por alguém de alta renda. Trata-se de uma violação tácita do princípio da capacidade contributiva, consagrado no discurso do campo como um dos pilares do sistema tributário nacional. A aparente igualdade formal oculta uma desigualdade material, pois desconsidera a heterogeneidade das condições socioeconômicas dos contribuintes.

O contraste com outros modelos tributários, como o norte-americano ou os adotados por países europeus, evidencia o desequilíbrio. No Brasil, cerca de 54,4% da arrecadação concentra-se sobre o consumo. Nos Estados Unidos, esse percentual não ultrapassa 17%. Já países como Alemanha, França ou Suécia estruturam sua arrecadação com forte incidência sobre a renda e o patrimônio, alicerçando políticas públicas de bem-estar e redistribuição. Esses modelos não são isentos de desafios, mas operam sob a premissa de que a justiça fiscal depende de um sistema que tributa mais aqueles que têm mais.

É necessário, portanto, superar a falsa neutralidade do discurso técnico e reconhecer que a atual matriz tributária brasileira é fruto de decisões que favorecem determinados segmentos sociais. A progressividade fiscal, prevista constitucionalmente como princípio estruturante, é enfraquecida por uma combinação de renúncias, isenções e omissões legislativas que restringem a atuação da tributação sobre a renda. Ao mesmo tempo, os tributos sobre o consumo continuam a ser aplicados com vigor, recaindo com mais intensidade justamente sobre quem possui menos capacidade contributiva.

A reforma desse modelo exige mais do que ajustes pontuais: é preciso reposicionar a tributação da renda como eixo central de uma política fiscal comprometida com a equidade. Isso implica rever a isenção dos dividendos, ampliar a progressividade das faixas do imposto de renda, criar mecanismos mais eficazes de tributação sobre grandes fortunas e heranças, além de aprimorar a fiscalização e o combate à evasão nos estratos superiores da renda.

A crítica à regressividade tributária, contudo, não deve ignorar os desafios operacionais envolvidos na transição para um sistema mais progressivo. A complexidade na fiscalização da renda, especialmente em um país com elevado índice de informalidade, impõe obstáculos técnicos que não podem ser desconsiderados. Ainda assim, tais dificuldades não justificam a perpetuação de um modelo que, por suas características estruturais, penaliza os mais pobres e favorece os mais ricos.

O próprio conceito de justiça fiscal exige que a tributação não apenas sirva à arrecadação, mas funcione como instrumento de correção das desigualdades estruturais da sociedade. Se a tributação incide majoritariamente sobre o consumo, ela pouco contribui para esse fim. A função distributiva do tributo torna-se inócua. É nesse ponto que a reforma da tributação sobre a renda assume papel central no horizonte de uma política fiscal mais justa. Sem ela, as promessas constitucionais de igualdade material e justiça social permanecem distantes da realidade.

A legitimidade do sistema tributário depende, em última instância, de sua aderência ao princípio da capacidade contributiva. Tributar desigualmente os desiguais não é uma concessão, mas um imperativo constitucional e ético. Um modelo que tributa pesadamente o consumo e marginalmente a renda falha em cumprir esse mandamento, aprofundando as desigualdades e corroendo a confiança dos cidadãos nas instituições.

Desse modo, a regressividade da matriz tributária brasileira não é um fenômeno isolado ou acidental, mas a expressão de um arranjo institucional que favorece determinados grupos em detrimento de outros. O desafio consiste em desnaturalizar esse arranjo, expondo suas implicações distributivas e recolocando no centro do debate a questão essencial: quem paga o quê, e por quê. A superação da desigualdade fiscal passa, necessariamente, pela centralidade da renda na equação tributária — e por um compromisso político claro com a progressividade.

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