Comércio internacional de bens e serviços e sua relação com a tributação

O recente tarifaço do presidente norte-americano Donald Trump, com a imposição de alíquotas de 34% sobre produtos chineses e de 10% sobre as importações brasileiras, acendeu alertas e gerou reações enérgicas em diversas frentes. Para muitos, trata-se de um retrocesso, um ataque direto à ordem multilateral e à racionalidade econômica. Porém, por trás do ruído retórico, a questão merece ser examinada com mais sobriedade: tarifas, nesse contexto, são tributos — especificamente, impostos de importação — e, como tal, integram o conjunto de escolhas de política fiscal disponíveis aos Estados. A pergunta central, portanto, não é apenas se a medida é “certa” ou “errada”, mas se ela faz sentido estratégico em um contexto de profunda transformação da ordem global.

A tributação no comércio internacional tem, desde os primórdios da Organização Mundial do Comércio (OMC), como eixo principal a regulação das tarifas aplicadas sobre bens. Esse arranjo encontra fundamento no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), firmado em 1947 e consolidado com a criação da OMC em 1995. O GATT estabelece que os países podem impor tarifas sobre a entrada de produtos estrangeiros, mas dentro de limites negociados multilateralmente, visando previsibilidade e não-discriminação. As tarifas, nesse modelo, são vistas como instrumentos legítimos — ainda que potencialmente protecionistas — de política econômica.

No entanto, o regime multilateral de comércio evoluiu e incorporou outros eixos regulatórios. A OMC é hoje sustentada sobre seus três pilares mais importantes: o próprio GATT (que trata do comércio de bens), o GATS (Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços) e o TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Essa estrutura reflete o reconhecimento de que, na economia contemporânea, os fluxos de valor não se limitam à circulação de bens materiais. Serviços, dados, algoritmos, marcas e licenças passaram a ocupar papel central nas cadeias globais de produção e nas estratégias de internacionalização das empresas.

Apesar disso, persiste uma distinção fundamental — e profundamente assimétrica — entre a tributação de bens e serviços no comércio internacional. Enquanto o GATT prevê a imposição de tarifas e estabelece regras para sua utilização, o GATS, que regula o comércio de serviços, não contempla a aplicação de tributos diretos sobre a importação de serviços. Ao contrário, sua ênfase está na redução de barreiras regulatórias e na promoção de acesso aos mercados, por meio de compromissos de liberalização assumidos pelos países-membros. Trata-se, portanto, de um modelo que privilegia a desregulamentação como mecanismo de abertura comercial.

Essa diferença institucional tem consequências relevantes. Em termos práticos, países continuam a ter ampla margem de manobra para tributar bens estrangeiros por meio de tarifas aduaneiras, mas enfrentam restrições muito maiores para limitar a entrada de serviços estrangeiros — sobretudo os digitais. Isso explica, em parte, por que tarifas sobre bens continuam a ser utilizadas como instrumento político e simbólico, mesmo em um contexto em que o valor econômico está cada vez mais nos intangíveis.

O caso norte-americano é emblemático. Embora os Estados Unidos apresentem déficit comercial recorrente no comércio de bens com países como China, México e Brasil, sua balança de serviços é majoritariamente superavitária. Empresas como Google, Microsoft e Meta exportam serviços digitais e licenças de software a partir de jurisdições com baixíssima tributação efetiva, utilizando sofisticados arranjos de planejamento tributário internacional. Além disso, a exportação de propriedade intelectual — via royalties e licenciamentos — tem sido uma das principais fontes de receita das corporações americanas.

Nesse cenário, a imposição de tarifas sobre bens não compromete diretamente os principais motores da economia americana. Ao contrário, pode funcionar como um instrumento de barganha ou retaliação simbólica, sem afetar significativamente os setores mais dinâmicos e lucrativos do país. Por isso, embora o tarifaço pareça um retorno ao protecionismo clássico, ele pode ser interpretado como parte de uma estratégia mais ampla de reposicionamento geoeconômico, em que os EUA procuram preservar suas vantagens comparativas reais — localizadas nos serviços, na tecnologia e na propriedade intelectual — enquanto projetam força sobre setores industriais já em declínio.

Esse raciocínio se fortalece quando se observa o papel histórico dos EUA na construção da ordem comercial multilateral. Desde as rodadas iniciais do GATT até a fundação da OMC, os americanos sempre foram protagonistas do processo de liberalização comercial, patrocinando a redução de tarifas, a criação de mecanismos de solução de controvérsias e a expansão do livre comércio como pilar da globalização. A eventual guinada tarifária, portanto, sinaliza não apenas uma inflexão política, mas também uma mudança nas coordenadas estratégicas que orientam a agenda comercial do país.

No entanto, o contexto atual é um pouco mais complexo. A economia digital escapa dos paradigmas clássicos da tributação e da regulação. Serviços são prestados a distância, armazenados em nuvem, entregues por plataformas, monetizados por publicidade e remunerados por assinaturas em moedas digitais. As fronteiras físicas — que delimitam a jurisdição tributária sobre bens — tornam-se menos relevantes diante da fluidez dos fluxos intangíveis. As alfândegas, outrora centrais na coleta de impostos de importação, tornam-se figurativas em um mundo de transações ocorridas em servidores, data centers e APIs.

A resposta institucional a essa realidade ainda é incipiente. O GATS, embora seja um marco importante na regulação multilateral dos serviços, permanece limitado em sua capacidade de disciplinar os fluxos digitais. Seus dispositivos foram elaborados em um contexto anterior à massificação da Internet e não contemplam integralmente as especificidades trazidas pela digitalização da economia. Iniciativas mais recentes, como as negociações sobre comércio eletrônico no âmbito da OMC, têm avançado lentamente, esbarrando em divergências entre os países sobre temas como soberania de dados, tributação digital e privacidade.

Nesse vácuo normativo, as tarifas sobre bens seguem sendo o instrumento mais visível — e, por isso, o mais explorado politicamente. Aplicar uma tarifa é uma medida de fácil compreensão para a opinião pública: cria-se a imagem de proteção da indústria nacional, de punição ao concorrente desleal, de defesa do trabalhador local. Trata-se de uma ação que, ainda que de eficácia econômica discutível, possui alto valor simbólico e rende dividendos eleitorais em contextos de insegurança econômica e crescente nacionalismo.

Por outro lado, a dificuldade em tributar serviços e ativos intangíveis internacionalmente abre espaço para distorções relevantes. Empresas altamente digitalizadas conseguem operar globalmente com mínima presença física, evitando a tributação nos países de consumo e canalizando seus lucros para paraísos fiscais. A erosão de bases tributárias e a perda de arrecadação por parte dos Estados são consequências diretas desse descompasso. É nesse ponto que o debate sobre tributação e comércio internacional se cruza com o tema da justiça fiscal global.

Em suma, o tarifaço de Trump, descrito pela maioria esmagadora dos analistas como “um mero devaneio protecionista”, deve ser analisado à luz das transformações estruturais do comércio internacional. As tarifas continuam sendo um instrumento disponível aos Estados, regulado pelo GATT, mas sua eficácia depende do que realmente está sendo transacionado no comércio global. Em um mundo onde o valor reside cada vez mais em serviços, dados e algoritmos, insistir em guerras comerciais baseadas em bens tangíveis pode ter eficácia limitada — mas pode fazer sentido estratégico em determinadas circunstâncias, especialmente quando combinado a políticas industriais, tecnológicas e fiscais voltadas à defesa dos ativos intangíveis que realmente movem a economia contemporânea. Resta saber se alguém na Casa Branca tinha todas essas questões em mente.

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